O Kit de detecção de Mentiras:
O pensamento cético se resume no meio de construir e compreender um argumento racional e – o que é especialmente importante – de reconhecer um argumento falacioso ou fraudulento. A questão não é se gostamos da conclusão que emerge de uma cadeia de raciocínio, mas se a conclusão deriva da premissa ou do ponto de partida e se essa premissa é verdadeira.
Eis algumas das ferramentas:
- Sempre que possível, deve haver confirmação independente dos “fatos”.
- Devemos estimular um debate substantivo sobre as evidências, do qual participarão notórios partidários de todos os pontos de vista.
- Os argumentos de autoridade têm pouca importância – as “autoridades” cometeram erros no passado. Voltarão a cometê-los no futuro. Uma forma melhor de expressar essa idéia é talvez dizer que na ciência não existem autoridades; quando muito, há especialistas.
- Devemos considerar mais de uma hipótese. Se alguma coisa deve ser explicada, é preciso pensar em todas as maneiras diferentes pelas quais poderia ser explicada. Depois devemos pensar nos testes que poderiam servir para invalidar sistematicamente cada uma das alternativas. O que sobreviver, a hipótese que resistir a todas as refutações nessa seleção darwiniana entre as “múltiplas hipóteses eficazes”, tem uma chance muito melhor de ser a resposta correta do que se tivéssemos simplesmente adotado a primeira ideia que prendeu nossa imaginação.
- Devemos tentar não ficar demasiado ligados a uma hipótese, só por ser a nossa. É apenas uma estação intermediária na busca do conhecimento. Devemos nos perguntar por que a ideia nos agrada. Devemos compará-la imparcialmente com as alternativas. Devemos verificar se é possível encontrar razões para rejeitá-la. Se não, outros o farão.
- Devemos quantificar. Se o que estiver sendo explicado é passível de medição, de ser relacionado a alguma quantidade numérica, seremos muito mais capazes de discriminar entre as hipóteses concorrentes. O que é vago e qualitativo é suscetível de muitas explicações. Há certamente verdades a serem buscadas nas muitas questões qualitativas que somos obrigados a enfrentar, mas encontrá-las é mais desafiador.
- Se há uma cadeia de argumentos, todos os elos na cadeia devem funcionar (inclusive a premissa) – e não apenas a maioria deles.
- A Navalha de Occam. Essa maneira prática e conveniente de proceder nos incita a escolher a mais simples dentre duas hipóteses que explicam os dados com igual eficiência.
- Devemos sempre perguntar se a hipótese pode ser, pelo menos em princípio, falseada. As proposições que não podem ser testadas ou falseadas não valem grande coisa. Considere-se a ideia grandiosa de que o nosso Universo e tudo o que nele existe é apenas uma partícula elementar – um elétron, por exemplo – num Cosmos muito maior. Mas, se nunca obtemos informações de fora de nosso Universo, essa ideia não se torna impossível de ser refutada? Devemos poder verificar as afirmativas. Os céticos inveterados devem ter a oportunidade de seguir o nosso raciocínio, copiar os nossos experimentos e ver se chegam ao mesmo resultado.
Questões adicionais são:
-Realize experimentos de controle - especialmente os experimentos "duplo cego" onde a pessoa que a medição não está ciente dos assuntos de teste e controle.
-Verificar os fatores de confusão - separar as variáveis.
Falácias comuns da lógica e da retórica:
- Ad hominem – expressão latina que significa “ao homem”, quando atacamos o argumentador e não o argumento (por exemplo: A reverenda dra. Smith é uma conhecida fundamentalista bíblica, por isso não precisamos levar a sério suas objeções à evolução);
- Argumento de Autoridade (por exemplo: O presidente Richard Nixon deve ser reeleito porque ele tem um plano secreto para pôr fim à guerra no Sudeste da Ásia – mas, como era secreto, o eleitorado não tinha meios de avaliar os méritos do plano; o argumento se reduzia a confiar em Nixon porque ele era o presidente: um erro, como se veio a saber);
- Argumento das Conseqüências Adversas (por exemplo: Deve existir um Deus que confere castigo e recompensa, porque, se não existisse, a sociedade seria muito mais desordenada e perigosa talvez até ingovernável. Ou: O réu de um caso de homicídio amplamente divulgado pelos meios de comunicação deve ser julgado culpado; do contrário, será um estímulo para os outros homens matarem as suas mulheres);
- Apelo à Ignorância – a afirmação de que qualquer coisa que não provou ser falsa deve ser verdade, e vice-versa (por exemplo: Não há evidência convincente de que os UFOs não estejam visitando a Terra; portanto, os UFOs existem – e há vida inteligente em outros lugares no Universo. Ou: Talvez haja setenta quasilhões de outros mundos, mas não se conhece nenhum que tenha o progresso moral da Terra, por isso ainda somos o centro do Universo). Essa impaciência com a ambiguidade pode ser criticada pela expressão: a ausência de evidência não é evidência da ausência;
- Alegação Especial, frequentemente para salvar uma proposição em profunda dificuldade teórica (por exemplo: Como um Deus misericordioso pode condenar as gerações futuras a um tormento interminável, só porque, contra as suas ordens, uma mulher induziu um homem a comer uma maçã? Alegação especial: Você não compreende a doutrina sutil do livre-arbítrio. Ou: Como pode haver um Pai, um Filho e um Espírito Santo igualmente divinos na mesma Pessoa? Alegação especial: Você não compreende o mistério da Santíssima Trindade. Ou: Como Deus permitiu que os seguidores do judaísmo, cristianismo e islamismo – cada um comprometido a seu modo com medidas heroicas de bondade e compaixão – tenham perpetrado tanta crueldade durante tanto tempo? Alegação especial: Mais uma vez você não compreende o livre-arbítrio. E, de qualquer modo, os movimentos de Deus são misteriosos);
- Petição de Princípio, também chamada de supor a resposta (por exemplo: Devemos instituir a pena de morte para desencorajar o crime violento. Mas a taxa de crimes violentos realmente cai quando é imposta a pena de morte? Ou: A bolsa de valores caiu ontem por causa de um ajuste técnico e da realização de lucros por parte dos investidores. Mas há alguma evidência independente do papel causal do “ajuste” e da realização de lucros? Aprendemos realmente alguma coisa com essa pretensa explicação?);
- Seleção das Observações, também chamada de enumeração das circunstâncias favoráveis, ou, segundo a descrição do filósofo Francis Bacon, contar os acertos e esquecer os fracassos (por exemplo: Um Estado se vangloria do presidente que gerou, mas se cala sobre os seus assassinos que matam em série);
- Estatística dos Números Pequenos – falácia aparentada com a seleção das observações (por exemplo: “ Dizem que uma dentre cada cinco pessoas é chinesa. Como é possível? Conheço centenas de pessoas, e nenhuma delas é chinesa. Atenciosamente ”. Ou: Tirei três setes seguidos. Hoje à noite não tenho como perder).
compreensão errônea da natureza da estatística (por exemplo: O presidente Dwight Eisenhower expressando espanto e apreensão ao descobrir que metade de todos os norte-americanos tem inteligência abaixo da média);
- Incoerência (por exemplo: Prepare-se prudentemente para enfrentar o pior na luta com um potencial adversário militar, mas ignore parcimoniosamente projeções científicas sobre perigos ambientais, porque elas não são “comprovadas”. Ou: Atribua a diminuição da expectativa de vida na antiga União Soviética aos fracassos do comunismo há muitos anos, mas nunca atribua a alta taxa de mortalidade infantil nos Estados Unidos (no momento, a taxa mais alta das principais nações industriais) aos fracassos do capitalismo. Ou: Considere razoável que o Universo continue a existir para sempre no futuro, mas julgue absurda a possibilidade de que ele tenha duração infinita no passado);
- Non Sequitur – expressão latina que significa “não se segue” (por exemplo: A nossa nação prevalecerá, porque Deus é grande. Mas quase todas as nações querem que isso seja verdade; a formulação alemã era “Gott mit uns”). Com freqüência, os que caem na falácia non sequitur deixaram simplesmente de reconhecer as possibilidades alternativas;
Post Hoc, Ergo Propter Hoc – expressão latina que significa “aconteceu após um fato, logo foi por ele causado” (por exemplo, Jaime Cardinal Sin, arcebispo de Manila: “ Conheço [...] uma moça de 26 anos que aparenta sessenta porque ela toma a pílula [anticoncepcional] ”. Ou: Antes de as mulheres terem o direito de votar, não havia armas nucleares);
- Pergunta sem Sentido (por exemplo: O que acontece quando uma força irresistível encontra um objeto imóvel? Mas se existe uma força irresistível, não pode haver objetos imóveis, e vice-versa);
- Exclusão do meio-termo, ou dicotomia falsa – considerando apenas os dois extremos num continuum de possibilidades intermediárias (por exemplo: Claro, tome o partido dele; meu marido é perfeito; eu estou sempre errada. Ou: Ame o seu país ou odeie-o. Ou: Se você não é parte da solução, é parte do problema);
- Curto Prazo Vs Longo Prazo – um subconjunto da exclusão do meio-termo, mas tão importante que o separei para lhe dar atenção especial (por exemplo: Não temos dinheiro para financiar programas que alimentem crianças mal nutridas e eduquem garotos em idade pré-escolar. Precisamos urgentemente tratar do crime nas ruas. Ou: Por que explorar o espaço ou fazer pesquisa de ciência básica, quando temos tantas pessoas sem teto?);
- Declive Escorregadio, relacionado à exclusão do meio-termo (por exemplo: Se permitirmos o aborto nas primeiras semanas da gravidez, será impossível evitar o assassinato de um bebê no final da gravidez. Ou, inversamente: Se o Estado proíbe o aborto até no nono mês, logo estará nos dizendo o que fazer com os nossos corpos no momento da concepção);
- Confusão de Correlação e Causa (por exemplo: Um levantamento mostra que é maior o número de homossexuais entre os que têm curso superior do que entre os que não o possuem; portanto, a educação torna as pessoas homossexuais. Ou: Os terremotos andinos estão correlacionados com as maiores aproximações do planeta Urano; portanto – apesar da ausência de uma correlação desse tipo com respeito ao planeta Júpiter, mais próximo e mais volumoso – o planeta Urano é a causa dos terremotos);
- Espantalho – caricaturar uma posição para tornar mais fácil o ataque (por exemplo: Os cientistas supõem que os seres vivos simplesmente se reuniram por acaso – uma formulação que ignora propositadamente a ideia darwiniana central, de que a natureza se constrói guardando o que funciona e jogando fora o que não funciona. Ou isso é também uma falácia de curto prazo/longo prazo – os ambientalistas se importam mais com anhingas e corujas pintadas do que com gente);
- Evidência Suprimida, ou meia verdade (por exemplo: Uma “profecia” espantosamente exata e muito citada do atentado contra o presidente Reagan é apresentada na televisão; mas – detalhe importante – foi gravada antes ou depois do evento? Ou: Esses abusos do governo pedem uma revolução, mesmo que não se possa fazer uma omelete sem quebrar alguns ovos. Sim, mas será uma revolução que causará muito mais mortes do que o regime anterior? O que sugere a experiência de outras revoluções? Todas as revoluções contra regimes opressivos são desejáveis e vantajosas para o povo?);
- Palavras Equívocas (por exemplo, a separação dos poderes na Constituição norte-americana especifica que os Estados Unidos não podem travar guerra sem uma declaração do Congresso. Por outro lado, os presidentes detêm o controle da política externa e o comando das guerras, que são potencialmente ferramentas poderosas para que sejam reeleitos. Portanto, os presidentes de qualquer partido político podem ficar tentados a arrumar disputas, enquanto desfraldam a bandeira e dão outros nomes às guerras – “ações policiais”, “incursões armadas”, “ataques de reação protetores”, “pacificação”, “salvaguarda dos interesses norte-americanos” e uma enorme variedade de “operações”, como a “Operação da Causa Justa”. Os eufemismos para a guerra são um dos itens de uma ampla categoria de reinvenções da linguagem para fins políticos. Talleyrand disse: “Uma arte importante dos políticos é encontrar novos nomes para instituições que com seus nomes antigos se tornaram odiosas para o público”).
----------------------------------
Conhecer a existência dessas falácias lógicas e retóricas completa o nosso conjunto de ferramentas. Como todos os instrumentos, o kit de detecção de mentiras pode ser mal empregado, aplicado fora do contexto, ou até usado como uma alternativa mecânica para o pensamento. Mas, aplicado judiciosamente, pode fazer toda a diferença do mundo – ao menos para avaliar os nossos próprios argumentos antes de os apresentarmos aos outros.
Fonte: Cap. A Arte Refinada de detectar Mentiras in O Mundo Assombrado Pelos Demônios de Carl Sagan.
Nenhum comentário:
Postar um comentário